segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Stand-up - Deadbeat Hero (2004), Doug Stanhope

Doug Stanhope – Deadbeat Hero

“Complaining that a comic is drunk is like going to a titty bar and complaining because your lapdancer is a communist.”

Tracemos a cronologia do stand-up comedy americano de contracultura (o que realmente interessa, portanto): nos anos 50 e 60, Lenny Bruce pavimentava o caminho a ser percorrido pelos seus sucessores com as suas tiradas antiautoritárias de uma obscenidade sem precedente para a altura; nos anos 70, surgem Richard Pryor, com o seu olhar incisivo e comentário mordaz acerca do racismo e diversas questões sociais, e George Carlin, inicialmente mais focado em questões de linguística e de humor observacional, mas que, à medida que foi envelhecendo, se tornou no primeiro grande mestre da comédia misantrópica e do humor negro; a Carlin sucede Bill Hicks (como se da Sagrada Escritura da comédia se tratasse), que apregoa ideais semelhantes aos do seu antecessor, contudo, tentando veicular uma mensagem de união, uma insistência para o fim das “merdices” da Humanidade. Levou-o o cancro, por azar, e o stand-up perdeu o seu Messias.

Eis que surge, ao virar do milénio, vindo das mais profundas entranhas da Terra, Lúcifer em pessoa: Doug Stanhope. A par de Louis C.K., os heróis de que a comédia hard-hitting e bem ofensiva necessitam. Há, contudo, que estabelecer uma diferença fulcral entre ambos: Louie é um gajo marado dos cornos, inteligente, engraçado e muito ofensivo. Stanhope é um “Darth Sidious” embriagado em palco. Desprovido de moralidade, consciência, amor-próprio ou qualquer espécie de decência, armado apenas com umas quantas garrafas de cerveja, um maço de Marlboro Lights e todo o ódio e nonchalance deste mundo condensados num físico baixo e atarracado, Stanhope faz a audiência questionar-se: “o que é sagrado, afinal?!”. Neste espectáculo, nada. Stanhope é sempre o mesmo ser repleto de ódio, mas em “Deadbeat Hero” quebra todos os limites do bom senso e daquilo que uma pessoa deve ouvir, quanto mais dizer, no seu próprio caso.

Difícil de acreditar? Este é o gajo que imagina um ataque terrorista a uma loja Subway que consiste na sua própria mãe, coberta de explosivos, a implodir em frente a um empregado incompetente, sem sequer causar qualquer espécie de destruição, simplesmente derretendo on the spot para traumatizar o jovem trabalhador. Este é o gajo que profere as palavras “I need a fourty-four-holed, two-headed baby girl, that’s the only way I can cum” ao referir-se a crianças que nascem com mutações, e imaginando-se, naturalmente, a receber oral de uma jovem de duas cabeças, sendo a cabeça de baixo que faria o servicinho a normal, e a cabeça de cima simplesmente olhá-lo-ia nos olhos, perguntando “Huuuuuuuurr, do you like my sister?!”. Este é o gajo que expõe, perante um público de bêbados a ele semelhantes, a sua experiência de um aborto juntamente com a sua mulher, não realizado por motivos frívolos como a incapacidade monetária para cuidar de uma criança, diz ele, mas sim porque “sempre quis saber como seria matar um bebé”.

Tudo isto, contudo, mescla-se com a visão libertária de Stanhope ao longo do espectáculo, a qual, embora não particularmente intelectualizada e muito vaga para ser tida em conta como uma posição política verdadeiramente clara, nos é possível apreciar de qualquer das maneiras por ser um apelo marcadamente liberal (a sua atitude pró-legalização das drogas, do aborto, o seu antimilitarismo óbvio e o seu antiteísmo recorrente). O próprio diz não ser nenhum intelectual, muito menos um artista; é, diria eu, simplesmente um tipo lunático do qual se torna impossível não gostar, se tivermos uma predisposição para a comédia sem fronteiras ou linhas por pisar.


Sem a visão aprofundada de Carlin sobre o mundo, sem a posição conciliadora (bem esmiuçada) de Hicks, mas com uma completa falta de decência e uma imaginação mais fértil do que algum comediante alguma vez demonstrou para chegar a conclusões que, se nada mais, são absolutamente inclassificáveis, Stanhope demonstra ser a verdadeira reencarnação do Mal que o stand-up comedy tão desesperadamente necessitava.

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